Democracia e Fake News

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Democracia e Fake News

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Democracia e fake news

A cada ano a democracia é exaltada e defendida nos discursos de políticos, de ativistas de direitos humanos, da imprensa e de outros setores da sociedade. Parece que ninguém discorda do valor intrínseco da palavra democracia e esta é utilizada como bandeira em vários discursos verbais ou escritos.

            E de alguns anos para cá os ditos especialistas em democracia têm afirmado que as fakes news são instrumento de ataque à honra de pessoas, em especial de pessoa públicas, às instituições, e que, em nome da democracia, é necessário o combate a essas desinformações.

            E o combate às fakes news é uma estratégia legítima em defesa da democracia? Ou é um estratagema insidioso para eliminar o direito de expressão em nome da defesa da democracia?

            A democracia, ou o termo democracia, é utilizado como um jargão propagandístico para a venda de ideias nada democráticas, a exemplo do combate às fakes news, que na verdade é o ataque às opiniões diferentes daquela tutelada por grupos de poder ou por quem detém poder político-econômico.

            A Constituição Federal de 1988 garante a liberdade de expressão no art. 5º, IV, da seguinte forma:

IV – é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;

            A manifestação do pensamento é livre, desde que o autor seja identificado, pois o texto constitucional veda o anonimato. Qualquer lei que atente contra essa liberdade de manifestação do pensamento é manifestamente inconstitucional. Toda e qualquer medida tomada por autoridade pública que infrinja o direito contido no art. 5º, inciso IV, da CF/88, é ilegal e inconstitucional.

            Mais adiante, a mesma Carta Magna garante, no art. 5º, inciso IX a liberdade da expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou de licença.

            O Congresso Nacional, através de uma Comissão Parlamentar Mista, instaurou, em defesa da democracia, investigação para apurar a disseminação das fakes news.

            A Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI das Fakes News tem como finalidade:

Investigar, no prazo de 180 dias, os ataques cibernéticos que atentam contra a democracia e o debate público; a utilização de perfis falsos para influenciar os resultados das eleições 2018; a prática de cyberbullying sobre os usuários mais vulneráveis da rede de computadores, bem como sobre agentes públicos; e o aliciamento e orientação de crianças para o cometimento de crimes de ódio e suicídio.

            A finalidade parece ser nobre, quem não é contra ataques cibernéticos que atentam contra a democracia e o debate público? A grande maioria da população é. Porém, disfarçado de combate às fakes news, conforme já mencionei, pode estar um movimento de supressão da liberdade de manifestação de pensamento, que é um dos direitos fundamentais.

            O Supremo Tribunal Federal – STF também entrou no movimento e, em nome do combate às fakes news, instaurou o inquérito nº 4781, que tramita de forma sigilosa, cujo “objeto é a investigação de notícias fraudulentas, denunciações caluniosas, ameaças ao STF e a seus membros” (STF, 2020). Apesar de sigiloso, o site do STF publicou, em 27/08/2020, a decisão de busca e apreensão nos domicílios dos investigados. Clique aqui para ter acesso à referida decisão.

            A Câmara dos Deputados recebeu, no dia 1º de abril de 2020 (também conhecido no Brasil como o dia da mentira), a Proposta de Lei nº 1429/2020, apresentada pela Deputada Federal Tabata Amaral (PDT/SP) e pelo Deputado Federal Felipe Rigoni (PSB/ES), para a instituição da Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Intenet. Nesse projeto, procura-se responsabilizar os provedores de aplicação pela ausência de adoção de medidas proativas para “proteger seus serviços contra a disseminação de desinformação através de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e pelo estímulo ao uso de boas práticas”, consoante o disposto no art. 8º do mencionado projeto de lei.

            No art. 11, o referido projeto de lei prevê que quando um determinado conteúdo com alcance significativo for verificado/checado por verificadores de fatos independentes e for “considerado desinformação, os provedores de aplicação devem implementar medidas proativas para minimizar a disseminação do conteúdo” (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2020).

            Em uma democracia, em nome da sua defesa, querem outorgar legitimidade e poder a verificadores de fatos independentes para dizer o que é informação ou desinformação e, com isso, os provedores serão obrigados a retirar o alcance dessa publicação rotulada como fake news pelos censores da atualidade, os famigerados verificadores de informação. Isso é um completo contrassenso.

            Nessa lei, além das redes sociais como Facebook, Instagram, estão inseridos os serviços de mensagens instantâneas, a exemplo de WhatsApp e Telegram, conforme redação da Seção IV do malfadado projeto de lei.

            O art. 21 do aludido projeto de lei menciona os requisitos que a pessoa jurídica precisa ter para ser considerada verificador de fatos independente, a saber:

Art. 21. Para ser qualificado como verificador de fatos independentes, a pessoa jurídica deve:

I – ser independente de governos e de partidos políticos;

II – comprometer-se com os princípios da imparcialidade, precisão e transparência;

III – realizar a verificação das informações por pares, com a devida identificação dos avaliadores;

IV – divulgar em site oficial a identificação do pessoal contratados e responsável pela verificação;

V – adotar as melhores práticas internacionais de verificação de fatos;

VI – ser transparente sobre suas fontes de financiamento, devendo esses financiadores se absterem de influenciar as conclusões emitidas;

VII – cumprir integralmente o disposto no Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros;

VIII – emitir relatórios públicos trimestrais com dados qualitativos e quantitativos sobre a desinformação, incluindo o número de revisões realizadas, o conteúdo verificado com as devidas decisões, a quantidade de correções emitidas e o banco de dados de que trata o art. 17; e

IX – permitir auditorias públicas e anuais, bem como estudos de acadêmicos que objetivem verificar o cumprimento dos verificadores de fatos sobre as disposições desta Lei.

            Na justificativa do projeto, os autores afirmam que “a desinformação não é uma ameaça nova à democracia, no entanto, com o poder das novas tecnologias, as redes de desinformação têm evoluído rapidamente ao redor do mundo”, e mais adiante, com espírito “protetor” do cidadão, afirmam que

mais de 60% da população brasileira está ativamente usando plataformas inundadas com redes de desinformação, sem qualquer preocupação com o seu impacto nas nossas vidas reais e na nossa sociedade (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2020).

            Em nenhum momento do projeto de lei se utiliza o termo fake news, preferindo o uso da palavra desinformação. E o que é desinformação?

            De acordo com o art. 4º, inciso III, do PL nº 1429/2020, considera-se:

III – desinformação: conteúdo falso ou enganoso que foi propositadamente colocado fora de contexto, manipulado ou completamente forjado com o interesse de enganar público e que:

I. Seja disseminado para obter ganhos econômicos; ou

b) Possa causar danos públicos, como fraudes eleitorais, o risco à estabilidade democrática, ao funcionamento de serviços públicos, à integridade física e moral de pessoas e grupos identificáveis por sua raça, gênero, orientação sexual ou visão ideológica ou consequências negativas à saúde individual ou coletiva.

            Verifica-se, pelo conceito legal de desinformação, uma ausência de clareza, isto é, o conceito é extremamente vago e isso gerará enorme insegurança jurídica, pois o conceito será preenchido caso a caso pelo aplicador da lei, o que é extremamente perigoso para o cidadão e para a mídia não tradicional, que ganhou espaço entre as pessoas por divulgar fatos e informações não divulgadas pelos grandes meios de comunicação.

            Na minha opinião, para o bem da democracia e para assegurar os processos democráticos supostamente defendidos pelo PL 1429/2020, o melhor caminho é rejeitar essa legislação logo na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados por inconstitucionalidade, pois se transformada em lei será um instrumento de censura e de perseguição a opiniões contrárias ao definido como “consenso da maioria”, o que é desfavorável a qualquer ideia legítima de democracia, pois esta deve permitir a coexistência de opiniões diversas, pois somente com a contraposição de opiniões e de ideias é que a sociedade pode estabelecer o que é melhor para ela.

            Em 2019, em um evento sobre liberdade de expressão, participação e justiça social, patrocinado pelo IMED, com a coordenação do professor doutor Neuro Zambam, defendi a tese de que para assegurar a liberdade de expressão, que é um dos principais direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal brasileira, não é necessária a publicação de leis que procurem assegurar tal direito, ou que, em nome do combate às fakes news, estabeleça critérios infralegais, bastando para tal proteção o texto constitucional e, quem se sentir prejudicado com a publicação de eventual desinformação, promova a respectiva ação judicial. Eis o trecho da hipótese defendida:

[…] para assegurar a liberdade de expressão, o assento constitucional de tal direito é medida suficiente, não devendo haver regulação do exercício desse direito em norma infraconstitucional, pois criar critérios em leis, ou em outros diplomas normativos, gera um risco demasiado de cerceamento da liberdade de expressão. Ou seja, a melhor regulação é a ausência de regulação infraconstitucional. (GUEDES; SOBREIRA FILHO, 2019, p. 219).

            Bom chamar a atenção que, nos últimos anos, quem mais atenta contra a liberdade de manifestação do pensamento é o poder público, quer pela atividade do Poder Legislativo (CPI e apresentação de projetos de lei), quer pelo Poder Judiciário (Supremo Tribunal Federal), através do inquérito nº 4781, conforme acima apresentado.

                        Resta a nós cidadãos, enquanto não cassam o nosso direito de expressão, nos manifestarmos contra toda e qualquer medida estatal que atente contra o direito fundamental à livre manifestação do pensamento. Por isso, é importante que você pressione os parlamentares federais para não aprovarem o PL 1429/2020, bem como que os investigados no inquérito judicial nº 4781 apresentem as suas defesas e exponham/publiquem o que está acontecendo.

Referências:

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei nº 1429/2020. Disponível em: <<https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2242713>>. Acesso em: 27 de maio de 2020.

LUZ NETO, Luiz Guedes; SOBREIRA FILHO, Enoque Feitosa. O desafio da liberdade de expressão em um mundo conectado: democracia digital sob o prisma da teoria do desenvolvimento de Amartya Sen. In: Neuro José Zambam; Henrique Aniceto Kujawa. (Org.). Estudos sobre Amartya Sen, Volume 6: liberdade de expressão, participação e justiça social. 1ed.Porto Alegre: Editora Fi, 2019, v. 6, p. 206-220.

STF. Inquérito nº 4781. Disponível em: <<http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5651823>> . Acesso em: 27 de maio de 2020.

Artigo publicado originalmente no site Guedes & Braga.

Para ler os artigos científicos do autor do site, clique aqui.

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